quarta-feira, 17 de novembro de 2010

É hora de rever o conceito de família desestruturada


Para a pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), não há o modelo ideal. Um lar com pai e mãe não é garantia de atenção à criança

É bem provável que você já tenha lido ou ouvido alguém em sua escola dizer que determinado aluno não aprende porque vem de uma família desestruturada. A ideia, extremamente preconceituosa, deve ser deixada de lado na opinião da psicanalista Belinda Mandelbaum, docente e coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Ela defende que pais separados, casais homossexuais, mães solteiras, avós responsáveis por netos e tantas outras configurações compõem núcleos que podem até fugir do idealizado pela sociedade, mas têm plenas condições de obter sucesso na Educação de crianças e jovens sob sua responsabilidade. Para isso, é importante a colaboração do professor no sentido de combater os estigmas.
"Nunca houve um modelo definitivo de família. Ela muda constantemente com a sociedade", afirma Belinda. Para a especialista, o essencial é o estudante ter em casa alguém que exerça os papéis materno e paterno - mesmo que seja uma pessoa só. Os educadores que compreendem essa realidade melhoram o relacionamento da escola com os responsáveis, são capazes de fazer os estudantes se sentirem acolhidos e ainda aprendem a identificar os verdadeiros problemas que os afetam. "É necessário saber o que angustia de fato a criança. E isso só ocorre se for estabelecido um diálogo honesto e livre de preconceito entre os envolvidos na Educação dela."

A estrutura familiar mudou?
BELINDA MANDELBAUM Ela se transforma continuamente durante a história para acompanhar as alterações sociais, econômicas e culturais. Muitos fatores afetam sua configuração, a forma de seus membros se relacionarem e seu modo de ser e de educar os filhos. Nunca houve um modelo definitivo, principalmente na cultura ocidental.

Na nossa sociedade, o que tem influenciado essa evolução?
BELINDA A situação econômica, por exemplo. Anos atrás, após um período de forte desemprego, muitas famílias de composição nuclear - pai, mãe e filhos que habitam uma unidade doméstica independente - perderam a renda e se mudaram para a casa dos avós. No fim dos anos 1990, os aposentados foram os principais provedores em muitas casas, inclusive as de classe média. Ampliou-se assim uma formação frequente nas camadas mais pobres, em que alguém tem um terreno em que são construídos puxados conforme os filhos vão se casando e todos convivem lado a lado. Às vezes, uma das mães é responsável por olhar todas as crianças enquanto as outras trabalham. Isso funciona.

Levando em conta essas mudanças e configurações cada vez mais comuns hoje em dia - como mães sozinhas e casais homossexuais -, faz sentido falar em família desestruturada?
BELINDA Uma coisa não tem a ver com a outra. Não podemos confundir o que foge do estereótipo do lar perfeito mostrado em comerciais de TV com uma família desestruturada. Essa condição não tem a ver com a composição nuclear. É preciso sair da questão biológica e atentar para as funções originalmente determinadas como paterna e materna, mas que podem ser exercidas por outras pessoas. O papel da mãe seria de acolhimento para criar o sentimento de confiança, fundamental para o desenvolvimento e, portanto, para a capacidade de aprendizado. O do pai, teoricamente, seria exercer a autoridade, colocar limites, mostrar que há regras a respeitar. Não é necessário ser o pai e a mãe biológicos para fazer isso. Outros adultos podem ter uma dessas atribuições, como o avô e a madrasta. Por outro lado, pode haver pai, mãe e filhos dentro de uma casa e ela ser uma catástrofe, em que ocorrem situações de abuso

Há algum movimento para levar a sociedade a mudar essa visão?
BELINDA Estudos do campo da Psicologia têm mostrado que a noção de estrutura tal como aparece nos dados oficiais não é significativa para o desenvolvimento psíquico dos pequenos. Quando se realizam censos demográficos, o pesquisador bate na porta da casa e apresenta um questionário. Entre as perguntas estão: tem pai? Tem mãe? Tem filhos? Em caso afirmativo, caracteriza-se uma família estruturada. A pergunta ideal seria outra: alguém exerce função de mãe? E de pai? Se essa prática fosse adotada, talvez as conclusões fossem diferentes.

Como o professor deve se posicionar frente à questão das diferentes composições familiares?
BELINDA Sempre sem demonstrar preconceito com relação a filhos de pais separados, adotados por casais homossexuais, criados por parentes etc. Quem não age assism tem de repensar seus valores. Esse é um bom trabalho para ser feito em grupo, com os colegas e a coordenação pedagógica. É função da escola permitir que o assunto seja pensado e conversado, já que os educadores têm um papel fundamental na forma de tratar o tema.

Qual a melhor maneira de abordar a questão com os alunos?
BELINDA Desmitificando a ideia de modelo ideal e propondo debates. Um bom caminho para isso é se basear em estatísticas. Na Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006, as famílias nucleares eram 49,6%, ou seja, mais da metade já tinha outras configurações. Muitas eram monoparentais, outras tantas formadas por pais ou mães homossexuais - um tipo que está em crescimento. Outra opção é destacar estudos recentes que já acenam para a conclusão de que, em termos do desenvolvimento psicológico e cognitivo, não há diferenças na criação de filhos por casais homossexuais. Quando o tema é tratado assim, promove-se um convívio melhor entre todos. A criança que está nessa situação se sente incluída, o que interfere na saúde psíquica dela.

É uma queixa comum dos educadores a falta de imposição de limites em casa. Isso realmente ocorre?
BELINDA Pode ser que em alguns casos a escola tenha razão. Situações de falta de limite são comuns hoje em dia. Os pais ficaram fragilizados não por culpa deles, mas em virtude de um processo histórico que tem a ver com a diminuição do poder econômico e da autoridade. O homem, principalmente, está passando por uma perda de lugar na sociedade e sem querer transmite isso aos filhos. Cria-se, assim, uma situação em que não é mais dentro de casa que eles encontram regras importantes para o seu crescimento. Diferentemente do que se possa pensar, eles se sentem mais seguros quando não podem fazer tudo e se há alguém dizendo que estão no caminho certo. De fato, estabelecer regras é uma ação cada vez mais transferida a outras instituições. É como se a responsabilidade fosse terceirizada, inclusive para a escola. Além de compreender que isso é o sintoma de uma transformação social - e não uma falta de atenção dos pais - a escola pode promover debates e grupos de reflexão que ajudem cada um a encontrar seu papel.

Qual a melhor atitude a tomar quando se avalia que problemas em casa dificultam o avanço do estudante?
BELINDA Se ele está com dificuldade e é levantada a hipótese de que aquilo esteja ligado às características de sua casa, é preciso verificar que tipo de apoio ele tem lá. Se alguém - independentemente de quem - faz o acompanhamento, não se pode dizer que seja esse o problema.

Por que, então, é tão comum atribuir a famílias desestruturadas o mau desempenho de um aluno?
BELINDA Isso é algo feito quase automaticamente pelo professor, sem reflexão sobre a real relação entre as coisas. O ideal seria se perguntar: o que está realmente dificultando o desempenho do aluno? A resposta não pode ser algo como "os pais são separados" ou "ele só tem mãe". O caminho é investigar o que está faltando de verdade à criança e estabelecer um diálogo honesto e livre de preconceitos com quem cuida dela. Só esse interesse genuíno já a ajuda. Se de fato uma situação doméstica está interferindo nos seus estudos, o educador precisa agir como o grande aliado que ela procura na escola.

Como se tornar esse aliado?
BELINDA O estudante que está vivendo uma situação angustiante em casa muitas vezes pede socorro na escola. O educador tem de ser sensível a isso porque nem sempre ele é explícito. Ao vê-lo triste, angustiado, malcuidado ou apresentando queda de rendimento, é preciso acolhê-lo e ajudá-lo. O primeiro passo é tentar a aproximação, com a abertura de um espaço de escuta. Ele vai se sentir melhor ao perceber que tem alguém com quem conversar, que está interessado nele e pelo que está passando. Pode ser que o encaminhamento psicológico seja adequado, mas isso nem sempre é a solução. Em muitos casos, a simples atenção do professor que está todo dia ao lado dele pode ser mais efetiva.

As novas formações familiares exigem estratégias diferentes de aproximação com os responsáveis?
BELINDA Em certo sentido, todos têm de ter o mesmo tratamento, mas é importante saber que cada caso tem suas particularidades. Mudanças no campo do Direito indicam o reconhecimento de que é impossível ter um padrão único para julgar todos os casos referentes à família e que é preciso levar em conta a especificidade de cada uma. Por exemplo: antigamente havia a figura jurídica do pai de família, que era sempre o pai. Hoje existe o chefe de família, que pode ser um homem ou uma mulher. O ideal é que esse mesmo espírito esteja na escola, que deve reconhecer as diferenças e demonstrar isso na maneira como atua. Não há uma fórmula para lidar com o diverso, mas os educadores têm de se preparar para fazer da escola um espaço de escuta das famílias.

Quando há mais de um responsável pela criança, é tarefa do professor conversar com todos?
BELINDA Não. Para que seja garantida uma zona de estabilidade para ela, é importante definir quem responderá pelas questões relativas à escola. Se os responsáveis não tomarem a iniciativa, caberá à escola conversar com eles para estabelecer quem será o interlocutor. Essa é uma questão bastante presente, ligada à guarda compartilhada. É lógico que os pais têm o direito de reconstruir sua vida, mas o filho tem de ter estabilidade. É difícil alguém ficar confortável morando dois dias em um lugar, três no outro, alternar fins de semana e ainda a cada momento ter uma orientação.

Até que ponto a escola precisa conhecer a situação do aluno em casa?
BELINDA Se há o verdadeiro interesse por ele, isso só pode ser positivo. Caso se desconfie de abuso, por exemplo, toda curiosidade é justificável, pois a atitude é de cuidado. Porém, se o educador vai para a conversa com os responsáveis querendo impor um monte de pressupostos morais sobre o comportamento deles, está fadado ao insucesso.

E o contrário: é correto compartilhar com os responsáveis tudo o que se passa na escola com os alunos?
BELINDA Os pais têm direito de saber o que ocorre com seus filhos. No entanto, não é preciso tomar a iniciativa. A criança necessita de um espaço em que nem tudo o que diz respeito a ela fique exposto. Acho absurdo os berçários instalarem câmeras para permitir que os pais vejam o filho o tempo todo. Uma das funções da escola é dar ao aluno a oportunidade de iniciar contatos com pessoas fora de sua casa, o que é fundamental para a sua independência.
Blogueiro: Tem que cruzar essa matéria, com a matéria que saiu publicada na revista Nova Escola. Lá eles comentaram a respeito de FAMÍLIA DESESTRUTURADA!

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